Na tarde de ontem, um público atento se reuniu na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, do IHU, para ouvir a reflexão do Prof. Dr. André Wenin sobre o feminino no livro do Gênesis. A atividade fez parte de da 10ª programação de Páscoa do IHU - Ética, Arte e Transcendência e encerrou uma série de palestras com Wenin que teve início na última segunda-feira, 18 de março. Para fazer sua análise, o professor se baseou nos versículos de 18 a 25 do capítulo 2 do livro do Gênesis, que falam sobre como Deus criou a mulher para fazer companhia ao homem.
Wenin inicia
sua fala dizendo que não considera adequado falar na criação da mulher,
de Eva, pois isso deixa supor que Adão, o macho, surgiu antes dela.
“Meu objetivo é mostrar, ao fazer a releitura deste trecho, que não foi
isso que aconteceu”, propõe.
O versículo 18 (Então o Senhor Deus declarou: “Não é bom que o homem esteja só; farei para ele alguém que o auxilie e lhe corresponda”),
segundo Wenin, traz a constatação do personagem divino de que algo não
está certo, que seria o abandono à solidão. “A vida humana é, por
definição, relacional.
Da
concepção à morte somos seres de relações”, argumenta o professor.
Então, Deus providencia um socorro: a companhia face a face. Na tradução
apresentada pelo biblista na palestra, havia a expressão “face a face”,
muito importante para compreender justamente a relação de igualdade
entre homem e mulher.
Wenin esclarece
que esse ser humano criado inicialmente por Deus não era um homem
macho. Adão seria um humano no sentido genérico, indiferenciado, algo
como um andrógeno, para citar a mitologia grega.
E aqui entra o outro
trecho destacado pelo professor, que seriam os versículos 21 e 22:
“Então
o Senhor Deus fez o homem cair em profundo sono e, enquanto este
dormia, tirou-lhe parte de um dos lados, fechando o lugar com carne. Com
este lado que havia tirado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher e a
levou até ele”.
O
primeiro destaque sobre essa passagem é em relação ao “sono profundo”,
que pode ser entendido como um momento de perda de consciência,
adormecimento, fazendo com que esse humano não saiba o que Deus fará com
ele. “Nenhum humano sabe de suas origens, seu fundamento. Essa é uma
questão antropológica importante. Nenhum humano domina seu próprio
começo”, defende.
Em
seguida, continua o professor, Deus se fez cirurgião, e fechou a ferida
da carne aberta para tirar um lado do homem. “Aqui temos uma falta,
pois foi tirado um pedaço do humano – e a cicatriz mostra isso. Estar em
uma relação pressupõe uma perda. Cada um será um lado, uma parte. Toda
relação humana é afetada por essa perda. No fundo, o outro é a parte que
não tenho, que não sou. Ele me lembra que não sou tudo. Se não
consentir com essa perda, não há uma relação plenamente estabelecida. É
na relação com o outro que o ser humano admite seus limites”, explica.
André Wenin vai adiante na sua interpretação ao ler com o público o versículo 23:
Disse
então o homem: “Esta, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha
carne! Ela será chamada mulher, porque do homem foi tirada”, esclarecendo que os termos homem (ish) e mulher (ishah) formam um jogo de palavras no hebraico.
Segundo
ele, no Gênesis, o homem, nesse momento, não se dirige à mulher, apenas
a toma como sua, falando sobre ela na terceira pessoa. Ele sequer
menciona a ação de Deus, pois ignora o que aconteceu no seu sono. “Ele
acredita saber quem é a mulher, mais isso é só no Antigo Testamento”,
brinca, rindo. E continua: “O homem não a trata como sujeito, mas se
refere a ela como sendo dele, pois foi tirada dele, de algo que falta
nele. É como se ele dissesse ‘sou eu fora de mim’. Como se a alteridade
não fosse constitutiva da mulher”.
O
importante, destaca o exegeta, é entender que homem e mulher são
tomados do ser humano. Cada um é um lado, uma parte. Mas aos olhos do
homem, a mulher é tomada dele, que se coloca no centro, retomando sempre
a mulher como seu bem. Ele dá a impressão de que deseja controlar o que
lhe escapa, a estranheza da situação. “Na verdade ele tenta preencher
uma dupla falta: do que lhe foi tirado e da ausência de conhecimento
sobre como isso foi feito”, explica, acrescentando que o ser humano tem
medo da diferença e que a falta e a alteridade sempre trazem insegurança
e são difíceis de lidar.
O próximo versículo analisado é o de número 24:
Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne.
Essa
afirmação, na concepção de Wenin, é a tentativa do homem em preencher
uma brecha para superar sua angústia diante do desconhecido. “Daí
inventamos a alma gêmea. Quando nos apaixonamos, achamos que o outro
preenche nossas faltas.
Na
verdade, o que amamos é a sensação de não sentir mais falta de nada”.
Segundo esse pensamento, deixar o pai e a mãe representa deixar o mundo
conhecido e tranquilo para se unir a alguém que escapa do seu mundo,
mesmo que a primeira impressão não tenha sido essa.
A partir da
concepção de “carne”, em hebraico, como pessoa única e singular, o que
pressupõe fragilidade e vulnerabilidade, Wenin acrescenta ainda que se o
humano decide se unir a uma mulher, ele está assumindo sua
vulnerabilidade e sua singularidade.
O último trecho destacado na palestra foi o versículo 25:
O homem e sua mulher viviam nus, e não sentiam vergonha.
“Harmonia
perfeita? Não acreditem nisso”, provoca o professor, que explica que
eles não sentiam vergonha, pois não se viam na sua diferença. Ainda
estavam lado a lado, mas não face a face.
E Wenin encerrou
sua fala com a seguinte reflexão: “Mesmo no amor, a distância
permanece. O outro é um mistério e nós somos um mistério para nós
mesmos. O outro deve trazer o que eu não espero. Não devemos
instrumentalizá-lo, esperando que ele traga o que esperamos. Aí é que
está a riqueza da relação”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário