Na contramão, as elites se esforçam para deslegitimar
nossas lutas e rasgar artigo por artigo das conquistas da chamada
Constituição Cidadã.
Episódio mais recente e negativamente simbólico é a
nomeação do pastor Marco Feliciano (PSC) para a Comissão de Direitos
Humanos e Minorias da Câmara (CDHM). Toda a sociedade é conhecedora de
sua postura assumidamente racista e intolerante
O que a Bíblia nos diz a respeito do povo negro?
Os evangelhos sinóticos são unânimes em afirmar que
certo Simão de Cirene ajudou Jesus a carregar a cruz, a caminho do
Calvário (Mt 27,32; Mc 15,21; Lc 23,26). Ora, Cirene fica no norte da
África. Mas alguma vez você ouviu em prédica ou sermão, na catequese, na
escola dominical ou no ensino confirmatório, que um africano ajudou
Jesus a carregar a cruz? Estudiosos dirão que se trata de um judeu da
diáspora, visto que no norte da África havia várias colônias judaicas.
Mas com que argumentos ou intenções fazem esta escolha na interpretação?
Por contrariar os interesses da corte de Jerusalém,
pouco antes da destruição da cidade pelas tropas babilônicas, o profeta
Jeremias foi preso e lançado numa cisterna. Um africano, funcionário do
rei (seu nome, Ebed-Melec, significa "ministro do rei"), liderou um
movimento para libertar Jeremias (Jr 38,1-13). Quantas vezes você se
lembra de ter estudado este texto, dando atenção a este "detalhe"?
Moisés, conta-nos Nm 12, casou-se com uma africana,
da região de Cush - Etiópia. Na verdade, quase toda a história do êxodo
se passa na África. Uma simples leitura do Canto de Miriã (Ex 15,19-21),
com certeza um dos textos mais antigos de toda a Bíblia, nos permite
notar a proximidade da cena com a rica cultura dos povos negros: canto e
dança ao redor dos tambores. Você já parou para pensar nisso?
O missionário Filipe, ao "aceitar a carona" na
carruagem do negro e alto funcionário de Candace, rainha da Etiópia, tem
uma grata surpresa: o africano já tem em suas mãos o livro do profeta
Isaías (At 8,26-40). E há quem continue afirmando que foram os europeus
que levaram a Bíblia para a África!
Pois bem, os exemplos acima são suficientes para nos provocar ao desafio: olhar a Bíblia na perspectiva da negritude!
Em primeiro lugar, porque seguimos acreditando que o
Deus da Bíblia faz opção pelas pessoas e pelos grupos mais
marginalizados. Em nossa sociedade, as mulheres, as pessoas negras e
indígenas continuam sendo as maiores vítimas da gritante exclusão
social. Com elas aprendemos a resistir. Em segundo lugar, porque
queremos e podemos descobrir as raízes negras do povo hebreu e de toda a
Bíblia. De fato, antes de ser europeia, a Bíblia é afro-asiática. Não
negamos a contribuição europeia ao nosso continente, queremos seguir
trocando saberes com o chamado "Velho Continente". Mas denunciamos o
cristianismo branco e opressor, com teologias que chegaram ao absurdo de
justificar a escravidão negra (feita pelos brancos) e que continuam,
muitas vezes, negando nossas raízes.
Não queremos fazer isso apenas pinçando textos
bíblicos nos quais apareçam personagens africanas. Este até pode ser o
primeiro passo, um exercício necessário e interessante. Mas é preciso
mais do que isso, é preciso olhar toda a Bíblia na perspectiva da
negritude. Porque essa é nossa experiência, ainda que negada: vivemos
num país onde metade da população é afro-descendente.
"Coincidentemente", é a metade mais pobre.
Que aceitemos o desafio de mergulharmos na Bíblia e
na vida com nosso olhar afro-descendente. Afinal, por muitos séculos,
fizemos isso apenas com o olhar europeu. Erramos e acertamos, agora
vemos que é preciso mais. Ou manteremos a opção, muito mais cômoda e bem
menos questionadora para nossa sociedade preconceituosa e racista, de
continuar enxergando apenas um Jesus loiro, de olhos azuis e cabelos
cacheados?
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