O
evangelho para a liturgia deste domingo inicia com o prólogo da obra de
Lucas (1,1-4). Sua intenção fundamental é apresentar a prática de Jesus
como fato histórico testemunhado por seus seguidores e suas seguidoras. O
destinatário é “Teófilo”, o que significa “amigo de Deus”. Teófilo é
toda a pessoa ou comunidade que vier a ler e a viver este evangelho,
tornando-se sempre mais amigo e amiga de Deus. Portanto, hoje, “Teófilo”
somos nós.
Movido pelo Espírito de Deus...
Na
sequência, o evangelho deste domingo apresenta um resumo da prática de
Jesus de Nazaré (Lucas 4,14-15). Ele vivia em meio a seu povo,
participando de sua vida de fé. Ensinava nas sinagogas da Galileia, na
periferia da Palestina. Toda sua missão é movida pelo dinamismo do
Espírito (Lucas 3,22; 4,1.14.18). Para as comunidades de Lucas, a ação
de Jesus é inseparável do Espírito profético, o Espírito de Deus. Convém
que tenhamos presente que a força do Espírito do Senhor também conduziu
João Batista e Maria, Isabel e Zacarias, Simeão e Ana (Lucas
1,15.35.41.67; 2,25-27.36).
Apresentando
a missão de Jesus dinamizada pela força do Espírito, a comunidade
lucana nos desafia a que também nós abramos nosso coração ao Espírito
Santo e nos coloquemos a seu serviço, a serviço da libertação de todas
as formas de opressão, promovendo a vida.
... para libertar os pobres...
A
narrativa a respeito da leitura de trechos do profeta Isaías feita por
Jesus na sinagoga de Nazaré (Lucas 4,16-21) insere-se numa narrativa
mais ampla, pois, na sequência, Lucas descreve a reação diante do
anúncio desse evangelho (boa-nova) aos pobres. Uns aprovam. Outros têm
dúvidas (Lucas 4,22-23). E há quem rejeita o projeto de salvação para os
mais desamparados (Lucas 4,23-30). O que não é possível é ficar
indiferente. A boa-nova para uns é uma má notícia para quem deseja
continuar vivendo à custa dos pobres. Essa é a razão por que se
enfureceram, o expulsaram e queriam precipitá-lo do cimo da colina
(Lucas 4,28-29). Como ontem, ainda hoje se repete a mesma situação.
Qualquer liderança que assume a promoção dos mais pobres, de modo que
possam ter pelo menos três refeições por dia e viver com dignidade,
continua sendo caluniada e perseguida. E isso não somente pela mídia
comprometida com o poder econômico, mas também por políticos e até por
setores de igrejas e tribunais. Não é por acaso que Jesus vê motivo de
alegria para as pessoas perseguidas por lutarem pela justiça (Mt
5,10-12).
Em
Lucas 4,16-21, temos a apresentação do programa de Jesus num dia de
sábado na sinagoga de Nazaré, sua terra natal. É o projeto do reinado
Deus. Na sinagoga, era costume rezar alguns Salmos, ler e comentar um
trecho de algum livro da lei (Pentateuco) e outro de algum livro
profético. Jesus escolhe três fragmentos do livro de Isaías para
anunciar o coração do projeto de Deus.
“O
Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me ungiu para anunciar a
boa-nova aos pobres: enviou-me para proclamar a libertação aos presos
(Isaías 61,1) e, aos cegos, a recuperação da vista (Isaías 35,5); para
dar liberdade aos oprimidos (Isaías 58,6) e proclamar um ano de graça do
Senhor” (Isaías 61,2).
Essa
missão libertadora vem do Deus da vida, pois é conferida a Jesus pelo
próprio Espírito do Senhor, por quem já fora ungido como o messias por
ocasião do seu batismo (Lucas 3,22).
A
missão do messias é de esperança de vida digna, certamente para todas as
pessoas, mas especialmente para quem está excluído da cidadania. Em
quatro afirmações, Jesus faz memória da profecia de Isaías para
descrever em que consiste a sua missão de “anunciar uma boa-nova aos
pobres”.
Primeiro,
“anunciar uma boa-nova aos pobres” é “proclamar a libertação aos
presos”. Por um lado, é a libertação de quem sobrevive em condições
subumanas nos presídios, onde a grande maioria está em consequência
dessa sociedade desigual, injusta e de exclusão. E, no tempo de Jesus, a
maioria das pessoas que se encontrava na prisão eram presos políticos
que resistiam contra a opressão e a violência do império romano. Por
outro lado, a proposta de Jesus é libertar-nos de todas as formas de
prisão, de tudo aquilo que nos impede de sermos nós mesmos, de sermos
livres, sem deixar-nos guiar pelo egoísmo, por vícios, pelo
individualismo, pela ganância, pelo consumismo, pela ambição, etc.
Senhor, liberta-nos de tudo o que nos aprisiona e impede de sermos
radicalmente livres.
Em
segundo lugar, “anunciar uma boa-nova aos pobres” é levar “aos cegos a
recuperação da vista”. É, sim, curar a cegueira física, mas é muito
mais. É também curar a nossa ‘cegueira’ quando não enxergamos a
realidade por estarmos com a visão embaciada ou com ‘viseiras’ que
impedem vermos a realidade em toda a sua amplitude. É curar a nossa
‘cegueira’ quando não vemos com nossos próprios olhos, não pensamos com
nossa própria mente, não escutamos com nossos próprios ouvidos e, por
isso mesmo, não dizemos nossa própria palavra, mas reproduzimos as
ideias do pensamento dominante na sociedade. Senhor, recupera as nossas
vistas. Dá-nos forças para alcançarmos clareza em nossas mentes e
corações, a fim de ampliar o nosso discernimento conduzido por teu
Espírito.
Em
terceiro lugar, “anunciar uma boa-nova aos pobres” também é “dar
liberdade aos oprimidos”, seja diante da opressão social, mental,
econômica, psicológica, política, afetiva ou religiosa. Senhor, que teu
amor mova nossos desejos, possibilitando-nos a graça de sermos pessoas
próximas, solidárias com quem vive na opressão.
Por
fim, “anunciar uma boa-nova aos pobres” é “proclamar um ano de graça do
Senhor”. Anunciar o ano de graça do Senhor é proclamar o ano jubilar
que fazia parte da tradição do Antigo Israel. Nos livros do Deuteronômio
e do Levítico fala-se desse jubileu. Primeiro, era uma reforma feita a
cada sete anos (Deuteronômio 15,1-18). Mais tarde, passou para cada 50
anos (Levítico 25,8-55). Era o ano do perdão das dívidas que, muitas
vezes, levavam à perda da terra, das casas e da própria liberdade. Por
isso, ao anunciar o ano jubilar, além do perdão das dívidas, o Espírito
do Senhor move Jesus para anunciar vida plena, o que também inclui terra
para quem está sem terra, moradia para quem está sem teto e liberdade
para quem sofre trabalho escravo.
... ontem e hoje
No
passado, o Espírito animava a profecia na proclamação da boa-nova da
libertação para os pobres (Isaías 61,1). Fiel à missão que o Espírito
lhe confiara no batismo (Lucas 3,22), Jesus atualiza essa profecia,
igualmente movido pela força do Espírito (Lucas 4,18). É por isso que
diz: “Hoje, se cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem da Escritura”
(Lucas 4,21).
No
nosso batismo, também somos ungidos pelo mesmo Espírito Santo e
assumimos o mesmo programa de Jesus. Por isso, podemos dizer com ele
que, em nós, “hoje, se cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem da
Escritura”. Que a graça de Deus nos ajude a colocar-nos no mesmo caminho
da profecia, no caminho do Espírito do Senhor.b
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