
"Numa
época, particularmente, anêmica de espírito", "importa suplicar ao
Espírito: Vem, Espírito Criador! Renove a face da Terra, aqueça nossos corações
e rasgue um horizonte de sentido e de esperança para a nossa realidade humana
desumanizada", escreve
Leonardo Boff,
teólogo, um dos redatores da
Carta da Terra e escritor.
Eis
o artigo.
Vivemos
numa época, particularmente, anêmica de espírito. A cultura do consumo afogou o
espírito na materialidade opaca. E sem espírito perdemos o que há de melhor em
nós: a comunicação livre, a cooperação solidária, a compaixão amorosa, o amor
sensível e a sensibilidade cordial pelo outro lado de todas as coisas, de onde
nos vem mensagens de beleza, de grandeza, de admiração, de respeito, de
veneração e de transcedência.
Neste
domingo, dia de Pentecostes, os cristãos celebram a irrupção do Espírito sobre
amentrontados seguidores de Jesus. Transformou-os em corajos mensageiros de sua
mensagem libertadora, alcançando-nos a nós até os dias de hoje. Nesta
oportunidade, cabe uma reflexão sobre o espírito em minúsculo e sobre o
Espírito em maiúsculo.
O
espírito: primeiro no universo depois em nós
Somos,
singularmente, portadores de grande energia. É o espírito em nós. O
espírito, na perspectiva da nova cosmologia, é tão ancestral quanto o cosmos.
Espírito é aquela capacidade que os seres, mesmo os mais originários, como os
hádrions, os topquarks, os prótons e os átomos de se relacionarem, trocarem informações
e de criarem redes de inter-retro-conexões, responsáveis pela unidade complexa
do todo. É próprio do espírito criar unidades cada vez mais altas e elegantes.
O
espírito, primeiramente, está no mundo, somente depois está em nós. Entre o
espírito de uma árvore e nós a diferença não é de princípio. Ambos são
portadores de espírito. A diferença reside no modo de sua realização. Em nós
seres humanos, o espírito aparece como aucoconsciência e liberdade.
Espírito
humano é aquele momento da consciência em que ela se sente parte de um todo
maior, capta a totalidade e a unidade e se dá conta de que um fio liga e
re-liga todas as coisas, fazendo que sejam um cosmos e não um caos. Como se
relaciona com o Todo, o espírito em nós nos faz sermos um projeto infinito, uma
abertura total, ao outro, ao mundo e a Deus.
A
vida, a consciência e o espírito pertencem, portanto, ao quadro geral das
coisas, ao universo, mais concretamente, à nossa galáxia, à Via-Láctea,
ao sistema solar e ao planeta Terra. Para que tivessem surgido, foi preciso uma
calibragem refinadíssima de todos os elementos, especialmente, das assim
chamadas constantes da natureza (velocidade da luz, as quatro energias
fundamentais, a carga dos elétrons, as radiações atômicas, a curvatura do
espaço-tempo entre outras). Se assim não fosse não estaríamos aqui escrevendo
sobre isso.
Refiro
apenas um dado do último livro do astrofísico e matemático Stephen
Hawking “Uma breve história do tempo”(2005): ”Se a
carga elétrica do elétron tivesse sido ligeiramente diferente, teria rompido o
equilíbrio da força eletromagnética e gravitacional nas estrelas e, ou elas
teriam sido incapazes de queimar o hidrogênio e o hélio, ou então não teriam
explodido. De uma maneira ou de outra a vida não poderia existir” (p.120). A vida
pertence, pois, ao quadro geral.
O
princípio andrópico fraco e forte
Para
conferir alguma compreensão a esta refinada combinação de fatores se criou a
expressão “princípio andrópico” (que tem a ver com o homem). Por ele se procura
responder a esta pergunta que naturalmente colocamos: por que as coisas são
como são? A resposta só pode ser: se fosse diferente nós não estaríamos aqui.
Respondendo assim não cairíamos no famoso antropocentrismo que afirma: as
coisas só têm sentido quando ordenadas ao ser humano, feito centro de tudo, rei
e rainha do universo?
Há esse risco. Por isso os cosmólogos distinguem o princípio andrópico forte e
fraco. O forte diz: as condições iniciais e as constantes cosmológicas se
organizaram de tal forma que, num dado momento da evolução, a vida e a
inteligência deveriam necessariamente surgir. Esta compreensão favoreceria a
centralidade do ser humano. O princípio andrópico fraco é mais cauteloso e
afirma: as precondições iniciais e cosmológicas se articularam de tal forma que
a vida e a inteligência poderiam surgir. Essa formulação deixa aberto o caminho
da evolução que demais a mais é regida pelo princípio da indeterminação de Heisenberg
e pela autopoiesis de Maturana-Varela.
Mas
olhando para trás, nos bilhões de anos, constatamos que de fato assim ocorreu:
há 3,8 bilhões de anos surgiu a vida e há uns quatro milhões de anos, a
inteligência. Nisso não vai uma defesa do “desenho inteligente” ou da mão
da Providência divina. Apenas que o universo não é absurdo. Ele vem carregado de
propósito. Há uma seta do tempo apontando para frente. Como afirmou o
astrofísico e cosmólogo Feeman Dyson: ”parece que o universo,
de alguma maneira, sabia que um dia nós iríamos chegar” e preparou tudo para
que pudéssemos ser acolhidos e fazer o nosso caminho de ascensão no processo
evolucionário.
O
universo autoconsciente
O
grande matemático e físico quântico Amit Goswami, que muito
vem ao Brasil, sustenta a tese de que o universo é autoconsciente (O
universo autoconsciente, Record 2002). No ser humano ele conhece uma
emergência singular, pela qual o próprio universo através de nós se vê a si
mesmo, contempla sua majestática grandeza e chega a uma certa culminância.
Cabe
ainda considerar que o cosmos está em gênese, se autoconstruindo e em expansão
contínua. Cada ser mostra uma propensão inata a irromper, crescer e irradiar. O
ser humano também. Apareceu no cenário quando 99,96% de tudo já estava pronto.
Ele é expressão do impulso cósmico para formas mais complexas e altas de
existência.
Alguns
aventam a idéia: mas não seria tudo puro acaso? O acaso não pode ser excluído,
como mostrou Jacques Monod no seu livro O acaso e a
necessidade, o que lhe valeu o prêmio Nobel em biologia. Mas ele não
explica tudo. Bioquímicos comprovaram que para os aminoácidos e as duas mil
enzimas subjacentes à vida pudessem se aproximar, constituir uma cadeia
ordenada e formar uma célula viva seriam necessários trilhões e trilhões de
anos. Portanto mais tempo do que o universo e a Terra possuem que é de 13,7
bilhões de anos.
Talvez
o recurso ao acaso mostre apenas nossa incapacidade de entender ordens
superiores e extremamente complexas como a consciência, a inteligência, o
afeto e o amor. Neste sentido a visão de Pierre Teilhard de
Chardin do universo que mais e mais se complexifica e assim permite a
emergência da consciência e da percepção de um ponto Ómega da evolução na
direção do qual estamos viajando, seja mais adequada para expressar a dinâmica
mesma do universo.
Não
seria melhor calarmos reverentes e respeitosos diante do mistério da
existência e do sentido do universo?
Depois
destas reflexões já estamos habilitados a abordar a dimensão teológica do
espírito como Espírito Criador.
O
Espírito Criador e a cosmogênese
Como
não podia deixar de ser, Deus também é incluido na dimensão do espírito. E por
excelência. Está presente na primeira página da Bíblia quando se narra a
criação do céu e da terra. Diz-se que sobre o touwabohu, isto é, sobre o caos,
melhor, sobre as águas primitivas “soprava um ruah (um vento, uma energia) impetuoso”
(Gn 1,2). Daquele caos tirou todas as ordens: os seres inanimados, os animados
e o ser humano. A este, tirado do pó como todos os demais, Deus “soprou-lhe nas
narinas o ruah de vida, o espírito, e ele tornou-se um ser vivo” (Gn
2,7). É no capítulo 37 de Ezequiel que irrompe, de forma
insuperavelmente plástica, a força vital do espírito. Quando este vem, os ossos
ressequidos ganham carne e se transformam em vida.
Também
as expressões mais altas do ser humano são atribuidos à presença do espírito nele,
como a sabedoria e a fortaleza (Is 11,2), a riqueza de idéias (Jo 32,28), o
senso artístico (Ex 28,3), o desejo ardente de ver Deus e o sentimento de culpa
e a consequente penitência (Ex 35,21; Jr 51,1; Esd 1,1; Es 26,9; Sl 34,19; Ez
11,19; 18,31).
Deus
“tem” espírito
Esta
força criadora e vivificadora é eminentemente possuida por Deus. As Escrituras
falam com frequência do espírito de Deus (ruah Elohim). Ele é dado a Sansão
para ter força portentosa (Jz 14,6; 19,15), aos profestas para terem
coragem de denunciar em nome dos pobres da Terra as injustiças que padecem,
para enfrentar o rei, os poderosos e anunciar-lhes o juizo de Deus.
Especialmente
no judaismo inter-testamentário se esperava para os fins dos tempos a efusão do
espírito sobre toda a criatura (Jl 2,28-32; At 2, 17-21). O Messias será “forte
no espírito” e virá dotado de todos os dons do espírito (Is 11,1ss).
É
neste contexto do judaismo tardio que surge a tendência de personificar o
espírito. Ele continua sendo uma qualidade da natureza, do ser humano e de
Deus. Mas sua ação na história é tão densa que começa a ganhar autonomia. Assim
se diz, por exemplo, que “o espírito exorta, se aflige, grita, se alegra,
consola, respousa sobre alguém, purifica, santifica e enche o unverso”. Jamais
se pensa nele como criatura, mas algo do mundo de Deus que, quando se manifesta
na vida e na história, tudo transforma.
O
Espírito é Deus
A
compreensão começou a mudar quando se cunhou uma expressão decisivia:”espírito
de santidade” ou “espírito santo”. Esta formulação guarda certa ambiguidade,
pois pode-se dizer espírito santo para se evitar dizer o nome de Deus (coisa
que os judeus até hoje, por respeito, evitam) como pode-se significar o
próprio Deus. “Santo” para a mentalidade hebraica, é o nome por excelência de
Deus o que equivale dizer na compreensão grega Deus como transcendente,
distinto de todo e qualquer ser da criação.
Em
resumo podemos afirmar: pela palavra espírito (ruah) aplicado a Deus
(Deus “tem” espírito, Deus envia o seu espírito, o espírito de Deus) os judeus
expressavam a seguinte experiência: Deus não está atado a nada; irrompe onde
quer; confunde planos humanos; mostra uma força à qual ninguém pode resistir;
revela uma sabedoria que torna estultície todo o nosso saber. Assim Deus se
mostrou aos líderes políticos, aos profetas, aos sábios, ao povo,
especialmente, em momentos de crise nacional (Jz 6,33; 11, 29; 1 Sam 11,6).
Assim
como é dado ao rei para que governe com sabedoria e prudência, no caso o rei
Davi (1 Sam 16,13) será dado também ao servo sofredor, destituido de toda pompa
e grandiloquência (Is 42,1) Em Is 61,1 se diz explicitamente:”o espírito de
Javé está sobre mim porque Javé me ungiu… para anunciar a libertação dos
cativos e a boa-nova para os pobres”, texto que Jesus aplicará a si na sua
primeira aparição na sinagoga de Nazaré (Lc 4, 17-21). Por fim, o espírito de
Deus não sinaliza apenas sua ação inovadora no mundo, mas aponta para o próprio
ser de Deus. O espírito é Deus. E Deus é Espírito. Como Deus é santo, o
Espírito será o Espírito Santo.
O
Espírito Santo penetra tudo, abarca tudo, está para além de qualquer limitação.
“Para onde irei para estar longe de teu Espírito? Aonde fugirei para estar
longe de tua face? Se eu escalar os céus, ai estás, se me colocar no abismo,
também ai estás”(Sl 139,7) Até o mal não está fora de seu alcance. Tudo o que
tem a ver com mutação, ruptura, vida e novidade tem a ver com o espírito. O
Espírito Santo está tão unido à história que ela de profana se transforma em
história santa e sagrada.
O
Espírito num mundo sem espírito e em degradação
Hoje
sentimos a urgência da irrupção do Espírito Santo como na primeira manhã da
criação. A Carta da Terra, face à crise mundial ecológica, com energias
negativas que nos podem arrastar ao abismo, afirma:”Como nunca antes da
história, o destino comum nos conclama a buscar um novo começo. Isto requer uma
mudança na mente e no coração. Requer um novo sentido de interdependência
global e de responsabilidade universal…Temos ainda muito que aprender a
partir da busca conjunta por verdade e sabedoria (final).
Cabe
ao Espírito iluminar nossa mente e transformar nosso coração. Se fizermos esta
conversão dificilmente escaparemos das ameaças que pesam sobre o sistema-vida e
sistema-Terra. Cabe ao Espírito a capaciadade de transformar o caos destrutivo
em caos criativo, como operou no primeiro momento do big bang. Ele pode
transformar a tragédia possível numa crise acrisoladora que nos permite dar um
salto de qualidade rumo a uma nova ordem, mais alta, mais humana, mas cordial,
mais amorosa e mais espiritual. O universo, a Terra e cada um de nós somos
templos do Espírito. Ele não permitirá que seja desmantelado e destruido.
Importa
suplicar ao Espírito: Vem, Espírito Criador! Renove a face da Terra, aqueça
nossos corações e rasgue um horizonte de sentido e de esperança para a nossa
realidade humana desumanizada.
Leonardo
Boff é coteólogo, um dos redatores da Carta da Terra e escritor.