Uma dificuldade que as pessoas hoje têm de compreender o sentido de unidade
da Igreja de Cristo deve-se ao fato de haverem muitas denominações
cristãs, diferentes Igrejas. Entretanto, essa diversidade é salutar!
A gente precisa entender bem essa questão da
“divisão” da Igreja. Não é verdade que a Igreja Primitiva era uma coisa
só. Não era! Havia uma variedade na forma de organização e na liturgia.
Desde do início da expansão missionária a partir da
Igreja de Antioquia, que envia Paulo e Barnabé em Missão por ordem do
Espírito Santo (cf. Atos 13.1-3),
o cristianismo começou a dialogar com culturas e povos diferentes
daquele ambiente nativo dos primeiros apóstolos. Nesse sentido, o
Apóstolo Paulo logo compreendeu que a grandeza do Evangelho não se
limitava aos preceitos do judaísmo, e que o Evangelho é de fato uma Boa
Nova para todos os povos. A expansão do Evangelho entre os povos pagãos
do Império Romano, especialmente no ambiente marcado pelo helenismo,
obrigou a Igreja em Jerusalém rever suas posições em relação às práticas
judaicas; tal revisão aconteceu no que chamamos de Concílio de
Jerusalém, narrado em Atos dos Apóstolos (15.1-33),
provocada pela própria Igreja de Antioquia, a grande igreja missionária
que, movida pelo Espírito Santo, deu início à evangelização do mundo
gentílico: as comunidades que surgem a partir do movimento de Antioquia
já não eram formadas apenas por pessoas de tradição judaica, mas também
por gentias, ou seja, não judias.
Assim, cerca de 40 anos após a Ressurreição de Jesus
já haviam “duas igrejas”: a Igreja de Jerusalém e suas comunidades
filhas, de forte orientação judaica, que se confundia inclusive com as
sinagogas; e a Igreja Gentílica, cujos procedimentos, especialmente em
relação aos usos e costumes, eram bem distintos. Todavia, não eram “duas
igrejas” mas uma única Igreja, com características diferentes.
Nem sempre o convívio entre as duas correntes era
pacífico. Haviam, naturalmente, escaramuças, mas o senso de unidade era
assegurado pela relação afetiva e companheira entre os apóstolos (não só os 12, mas todos aqueles que pregavam o Evangelho sendo testemunhas da Ressurreição).
Varias fontes não bíblicas, mas reconhecidamente validadas pela
Historiografia, relatam o surgimento de comunidades cristãs fora do
Império Romano, no interior da Ásia e até na Índia. Isso amplia muito
nossa percepção da diversidade da Igreja ao final do primeiro século
cristão.
Ao final do séc. III e início do IV, a Igreja estava
organizada, pelo menos dentro do Império Romano, com as ordens clericais
e a divisão territorial das dioceses (uma unidade territorial do Império),
sendo que os Bispos das cidades maiores eram chamados Arcebispos ou
Metropolitas, e a eles se subordinavam, de forma afetiva e pastoral os
bispos das cidades menores circunvizinhas; em caso de discordância
doutrinária, por exemplo, os Metropolitas serviam como árbitros e
convocavam concílios regionais para acertar o passo.
A Igreja do Ocidente
Com a derrocada do Império no ocidente, a Igreja se
tornou a única instituição estável dentro do caos social e político que
se criou. Os Metropolitas ganharam força política e o Metropolita da
antiga Capital Imperial, Roma, acabou se tornando o mais importante. A
agregação hierárquica a partir do Bispo de Roma acabou se consolidando
em meados do século VI, e a Igreja Ocidental foi se tornando cada vez
mais monolítica e padronizada. Vários concílios foram consolidando as
formas estruturais e o corpo doutrinário, fixando a identidade da Igreja
Latina, que hoje conhecemos como Igreja Católica Romana.
No Oriente, onde ainda sobrevivia o Império, a Igreja
se manteve dentro do antigo padrão dos Patriarcados organizados em
arquidioceses e dioceses interdependentes, mas distintos. O Patriarca
Romano se tornou, todavia, o Chefe absoluto da Igreja Ocidental
assumindo a Igreja o papel político de polo unificador do Ocidente
retalhado em feudos.
Todavia, no Ocidente, essa concentração hierárquica
vertical e o corpo doutrinário fechado, não foi bem acolhida entre os
diferentes povos que então ocupavam, de forma autônoma, o antigo
território imperial. No seio das dioceses havia o descontentamento e
movimentos de defesa da autonomia, bem como diferentes formas de pensar
teológico, nem sempre fiéis à dogmática imposta.
Assim, por exemplo, a antiga Igreja dos Celtas, na
Grande Bretanha, submeteu-se sob a força dos exércitos saxões ao Bispo
de Roma, mas manteve em seus porões sua antiga tradição que provinha da
Igreja do Oriente, mesclada com a cosmovisão da Antiga Religião. O mesmo
aconteceu entre os povos da Gália (hoje parte da França), e no interior
da Europa Central, que ao contrário dos eslavos a nordeste e sudeste,
não foram evangelizados pelos Orientais (essa a origem da Igreja Ortodoxa Russa, por exemplo).
No decorrer da Idade Média houveram muitos movimentos
de reforma da Igreja Ocidental. A Reforma do século XVI foi a que
obteve maior êxito, criando novas formas de ser Igreja: a Igreja
Evangélica (alemã) e a Igreja Reformada (suíça). É preciso ter claro que
tais Igrejas não saíram da comunhão com Roma, mas foram excomungadas
por Roma, criando assim a divisão que perdura até hoje no Ocidente.
Todavia, as diferentes Igrejas que, a partir dai,
surgiram, de cunho nacional e/ou étnico, sempre tiveram a consciência de
serem partes da Igreja Una, Santa, Católica(no sentido de ser de todo o mundo = ecumênica = oikomene) e Apostólica de Jesus Cristo.
A origem da Igreja Episcopal
Quando, por razões de Estado, a Igreja da Inglaterra
se torna autônoma em relação ao Papado, o processo de sua reorganização
só se consolida no reinado de Elizabete I, formando-se assim a Igreja
Nacional e Estatal que é, até hoje, a Church of England, acolhendo em
seu seio as diversas tonalidades cristãs que existiam na Inglaterra, e
ao mesmo tempo permitindo a organização de “Igrejas Livres” (sem a tutela do Estado),
dando origem por exemplo, às Igrejas Congregacionais e às Igrejas
Batistas. Assim, se em seu início a Igreja da Inglaterra era muito
marcada pela diversidade teológica, também preservou a riqueza litúrgica
herdada da Igreja Latina, mas com as adaptações decorrentes da Tradição
Celta que, de certa forma, veio do Oriente.
Na Escócia, a Igreja lá existente no século XVI era
profundamente influenciada pelo calvinismo. Assim, organiza-se a Igreja
Presbiteriana, que ficou sendo chamada de Igreja da Escócia (The Church
of Scotland) . Todavia, nem todos aceitaram uma organização
presbiteriana-congregacional e adotaram o episcopado histórico. Surge
assim a Igreja Episcopal da Escócia (The Scottish Episcopal Church ou na
língua original, Eaglais Easbaigeach na h-Alba), fortemente marcada
pela teologia de Genebra, mas também buscando manter seu laço com o
episcopado histórico, a exemplo da Igreja da Inglaterra. Essa Igreja
acaba adotando o Livro de Oração Comum escrito pelo Arcebispo Laud, o
qual contém muito do Livro original elaborado pelo Arcebispo Cranmer e
se afasta do modelo presbiteriano definitivamente. Todavia, ainda hoje
na Escócia, as duas Igrejas Nacionais convivem e em muitas situações se
articulam de forma conjunta.
Quando as Colônias Inglesas na América do Norte se
tornam independentes, dando origem aos Estados Unidos da América, houve a
preocupação de organizar-se uma Igreja Protestante Nacional,
porém não dependente do Estado recém fundado. Naquele tempo, nos
territórios coloniais, haviam diferentes denominações cristãs,
traduzindo, de certa forma a mesma diversidade que existia na Metrópole.
Houve um movimento procurando unir tais diferentes denominações em uma
Igreja Nacional, e chegou-se ao consenso de adotar-se o modelo
episcopal, mas manteve-se a liberdade dos grupos que não aceitaram
unir-se à Igreja Nacional nascente.
Uma vez decidido que a Igreja Nacional teria um
governo episcopal, necessário foi buscar a sagração de seu primeiro
bispo de modo a garantir o Episcopado Histórico à nova Igreja.
Naturalmente, isso foi buscado junto à Igreja da Inglaterra, mas devido
às circunstâncias da Independência e o fato da Igreja inglesa ser
estatal – isto é, vinculada à Coroa Britânica e ao Parlamento – os
norte-americanos foram aconselhados a buscar o Episcopado Histórico
entre os escoceses, sendo prontamente atendidos. Assim, o primeiro bispo
da Igreja Protestante Episcopal dos Estados Unidos da América foi
sagrado por bispos escoceses. Mas o segundo e o terceiro bispo já foram
sagrados por ingleses, de forma que conseguiu-se manter uma certa
unidade de comunhão apostólica entre a nova Igreja e a Igreja da antiga
metrópole, e também com a Igreja escocesa. Ai está a gênese da Comunhão
Anglicana, que se consolida no século XX!
Como a Igreja da Inglaterra, a Igreja Episcopal dos
Estados Unidos nasceu com uma rica diversidade de formas e compreensões
teológicas em seu seio, pois incorporou diversas tendências teológicas e
litúrgicas, decorrentes do processo de união da qual nasceu. Sua
unidade, como na Igreja da Inglaterra, é fundamentada no Livro de Oração
Comum como manual litúrgico aberto (uma diversidade de formas
cerimoniais para executar seu conteúdo ritual) e no pacto estabelecido
no século XIX conhecido como Quadrilátero de Lambeth-Chicago; tal
unidade garante a diversidade, que se torna parte de sua própria
identidade. Hoje essa Igreja Nacional (mas não estatal) dos Estados Unidos, é chamada The Episcopal Church (TEC).
Há várias formas de expressão dentro da Igreja
Episcopal. Há os evangélicos, os evangelicais, os mais conservadores, os
mais liberais, os mais litúrgicos, os teologicamente mais próximos de
Roma, os mais próximos da Tradição Reformada e todas os possíveis
entrelaçamentos dessas expressões. Sempre houveram tensões entre as
diferentes ênfases; não é de hoje, e isso às vezes causou rupturas na
unidade, através de cismas e formação de novas denominações. Outras
vezes grupos se deligaram da Igreja mas decorrido o tempo de uma ou duas
gerações retornaram… essa dinâmica é própria de uma Igreja que se
recusa adotar posturas dogmáticas e depender de uma hierarquia
absolutista verticalizada.
É essa Igreja que chegou ao Brasil em 1890, através
de Morris e Kinsolving, e que deu origem à Igreja Protestante Episcopal
no Rio Grande do Sul, depois Igreja Episcopal Brasileira, depois Igreja
Episcopal do Brasil e agora Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, que é
autóctone, autônoma e independente de sua Igreja Mãe (The Episcopal Church) ou de sua Igreja Avó (The Scottish Episcopal Church) ou ainda de sua Igreja Tia-Avó (The Church of England).
É parte da Comunhão Anglicana; é uma Igreja Nacional que incorpora a
cultura brasileira, e um espaço de diversidade e liberdade de pensamento
que acolhe todas as pessoas que buscam a fé sem negar sua inteligência.
O momento presente da Igreja do Brasil
O mundanismo da pós modernidade vem invadindo a Igreja nos últimos tempos. O personalismo e o generalismo (em lugar da erudição e conhecimento)
começa a minar o senso de identidade e de unidade da Igreja. As ênfases
e tendências que garantem a diversidade começam a apresentar-se como
“partidos” que disputam espaço e poder institucional.
Por estar inserida na sociedade brasileira, a Igreja
sofre o mesmo fenômeno de “emburrecimento” das novas gerações
decorrentes de um sistema escolar deficiente e organizado para não
educar. Ao mesmo tempo, há um pragmatismo dogmático de formar
mão-de-obra, como no mundo secular, sem conhecimento real, apenas
prático. A formação do clero se torna cada vez mais deficiente,
seguindo o modelo da sociedade, e estuda-se a Teologia em termos
acadêmicos, mas dissociada da prática pastoral e principalmente do
estímulo à piedade pessoal. O estudo da Teologia passa a ser uma
formalidade a ser cumprida; a piedade pessoal é descuidada em nome de
uma pretensa secularização de “imersão no mundo”; o convívio vocacional
não existe e assim os membros do clero se entendem como “colegas” e
muitas vezes concorrentes entre si.
Há uma histérica necessidade de afirmar uma
“identidade” anglo-isso, anglo-aquilo; o que eu vejo é muita gente se
preocupando com detalhes da forma sem aprofundar conteúdo, uma coisa do
tipo “garantir espaço”, “marcar território”. Perde-se o senso da
eclesiologia e da catolicidade da Igreja quando o Episcopado se torna
alvo de disputas de poder institucional sem a perspectiva real do
pastorado e do serviço – o péssimo estilo brasileiro de fazer política
se torna comportamento na Igreja quando há a necessidade de uma eleição
episcopal – o poder pelo poder!
Perspectivas de esperança
O Apóstolo Paulo, escrevendo aos Efésios, diz:
Como prisioneiro no Senhor, rogo-lhes que vivam de maneira digna da vocação que receberam. Sejam completamente humildes e dóceis, e sejam pacientes, suportando uns aos outros com amor. Façam todo o esforço para conservar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz. Há um só corpo e um só Espírito, assim como a esperança para a qual vocês foram chamados é uma só; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos. E a cada um de nós foi concedida a graça, conforme a medida repartida por Cristo. (Efésios 4:1-7 – Nova Versão Internacional)
É necessário suportar uns aos outros, não como tolerância, mas como suporte, sustentação uns dos outros.
É urgente retornarmos ao convívio da oração coletiva,
do estudo da Bíblia e da partilha pastoral, não só nas comunidades,
onde isso ainda acontece, mas entre o clero e as lideranças leigas.
É urgente que reestabeleçamos a formação teológica
vinculada à formação pastoral e ao desenvolvimento da piedade e
disciplina pessoal.
É urgente que deixemos a administração dos negócios
financeiros e patrimoniais da Igreja nas mãos de pessoas realmente
competentes e profissionais, de preferência leigos, e que a hierarquia e
o clero se submetam às recomendações técnicas de saneamento econômico
da Igreja. É urgente que nossos Bispos e o clero se dediquem mais ao
Pastorado, à Missão, à Evangelização, ao Ensino e à Cura de almas que à
administração institucional; que liderem o caminhar do Povo de Deus e
não da instituição humana.
É fundamental que se invista em infraestrutura (comunidades locais e dioceses) que em estruturas (provinciais e diocesanas).
É fundamental o fortalecimento do laicato, não só nos
serviços ministeriais, mas também como poder autônomo na Igreja,
atuando como espaço crítico-reflexivo que possa ajudar o clero e o
episcopado a perceber as tendências do mundo e, assim, produzirem a
reflexão teológico-pastoral adequada aos desafios do tempo presente.
Nesse sentido, o ministério dos Diáconos ganha um significado
importantíssimo!
Tais buscas, se realmente começarem a acontecer, me
darão a esperança que minha Igreja ainda está viva e consciente de sua
dependência do Espírito Santo de Deus e subordinada em obediência ao
Senhor Jesus Cristo.
[Nota:
comentários com a devida correção de detalhes e imprecisões históricas
ou de interpretação da história serão muito bem vindos, pois o artigo
foi escrito sem uma pesquisa profunda, baseada apenas nos meus poucos
conhecimentos adquiridos no decorrer dos anos]
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