"Felizes os que são pobres no espírito, porque deles é o reino dos céus"
(Mateus 5,3).
(Ildo Bohn Gass)
Todas as pessoas são chamadas à santidade, a fim de
serem bem-aventuradas. "Sede santos, porque eu, Javé vosso Deus, sou
santo" (Levítico 19,2). A comunidade de Mateus faria uma releitura desse
chamado da seguinte forma: "Sede perfeitos, como o Pai celeste é
perfeito" (Mateus 5,48). Coerente com sua experiência com o Deus da
misericórdia, a comunidade de Lucas formula assim o mesmo convite: "Sede
misericordiosos como vosso Pai é misericordioso" (Lucas 6,36).
Dia 02 de novembro é um dia especial em que milhões
de pessoas refletem sobre todas as pessoas bem-aventuradas e que já se
encontram na glória do Pai. Para nós, que ainda peregrinamos neste mundo
na promoção de vida digna, Jesus nos propõe um caminho de santidade e
que já começa nesta vida. Conforme a comunidade de Mateus, as oito
bem-aventuranças são esse caminho.
Quando Mateus apresenta Jesus fazendo cinco grandes
discursos (Mateus 5-7; 10; 13,1-52; 18; 24-25), sua intenção é
apresentá-lo como o novo Moisés, a quem eram atribuídos os cinco livros
da Lei, o Pentateuco. A Lei era considerada a expressão da vontade de
Deus. No tempo de Jesus, muitos fariseus estavam preocupados em viver a
Lei em todos os seus pormenores. Jesus, porém, vive e anuncia essa
vontade de Deus indo além da letra da Lei. Diz que, mais que a letra, é o
espírito da Lei que interessa. Disse ainda que o espírito da Lei
consiste na vivência do amor a Deus e ao próximo como a si mesmo (Mateus
22,34-40). Assim, o amor passa a ser a orientação fundamental para o
nosso agir (cf. Mateus 12,1-8; 23). Mateus chama essa vontade de Deus de
justiça do Reino (cf. Mateus 6,33). Se Moisés era o antigo mestre da
Lei, Jesus é o novo mestre da justiça a nos ensinar o caminho de Deus, o
caminho da santidade no amor.
O primeiro grande ensinamento do mestre da justiça, o
Sermão da Montanha (Mateus 5-7), é um conjunto de orientações para a
boa convivência na comunidade. Tal como Moisés escrevera as palavras da
Lei estando sobre um monte, Jesus dá as novas orientações também numa
montanha (Êxodo 34,28; Mateus 5,1).
As bem-aventuranças (Mateus 5,1-12) são a porta de
entrada ao Sermão da Montanha (Mateus 5-7). São um programa de vida para
trazer felicidade plena a quem adere à Boa-Nova de Jesus.
A justiça do Reino dos Céus (= de Deus), isto é, a
vontade de Deus, é o carro-chefe das bem-aventuranças. O Reino é o
projeto na primeira e na oitava bem-aventurança. E, no centro, estão a
busca da justiça (do projeto do Reino) e a busca da misericórdia (ter o
coração voltado para quem está na miséria). Uma vez realizada a justiça
de Deus, os empobrecidos deixarão de ser oprimidos, pois haverá partilha
e solidariedade. Por isso, Jesus os declara felizes.
A primeira bem-aventurança é a mais importante. As
demais são desdobramentos desta. Os pobres são aqueles que choram, são
os mansos ou humildes (no Salmo 37,11, texto-base para esta
bem-aventurança, são chamados de anawim, isto é, de pobres), os
que têm fome, os misericordiosos, os puros de coração, os que promovem a
paz e as pessoas perseguidas por causa da justiça. E as dádivas para os
empobrecidos são: o Reino de Deus, o conforto, a terra partilhada, a
fartura, a misericórdia, a contemplação de Deus e a filiação divina
(agir à imagem e semelhança de Deus ou ter as mesmas atitudes de Deus).
Porém, ser pobre não é suficiente. Está claro que os
empobrecidos são os preferidos de Deus, justamente porque ele não pode
ver nenhum de seus filhos e nenhuma de suas filhas passando por
necessidades. Ainda mais, quando a pobreza é fruto da injustiça humana. É
interessante notar que esta mesma bem-aventurança, no Evangelho segundo
Lucas, reza assim: "Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de
Deus" (Lucas 6,20).
Quando a comunidade de Mateus acrescentou "no
espírito" à primeira bem-aventurança de Jesus (Mateus 5,3), também
estava preocupada com o fato de que há pobres com coração e mente
impregnados com o espírito de rico, buscando o sentido mais profundo
para a vida na riqueza e no poder. Por isso, quis deixar bem claro para
seus destinatários que não basta ser pobre, mas que é preciso ser "pobre
no espírito", isto é, viver de acordo com o espírito do próprio Deus. É
possível que a comunidade de Mateus, ao acrescentar à parábola do
banquete a presença de um homem sem a veste nupcial (Mateus 22,1-14;
comparar com Lucas 14,16-24), queira justamente se referir à necessidade
de também ser pobre no espírito, ou seja, livre de tudo que escraviza.
Ser pobre no espírito também é a opção pelo projeto da justiça e da
misericórdia, é viver na total confiança e dependência de Deus, é
confiar na partilha, na vida simples e na fraternidade.
Aliás, são justamente as pessoas que buscam a
felicidade no consumismo, na acumulação e no individualismo que
perseguem aos que lutam pela justiça do Reino, pela paz e pela partilha.
Foi assim que, no passado, os poderosos perseguiram os profetas (Mateus
5,10-12).
E hoje, Jesus renova o convite para nós: "Buscai em
primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos
serão dadas por acréscimo" (Mateus 6,33). E o caminho da justiça do
Reino, o caminho da santidade está na prática do espírito da Lei
proposto nas orientações fundamentais para a vida, e que Jesus sintetiza
nas bem-aventuranças.
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