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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Gerar vida e gerar morte - Ivone Gebara, Escritora, filósofa e teóloga


Espanta-me a facilidade como alguns clérigos e bispos afirmam poder distinguir com clareza as forças que geram vida e as que geram morte. Discorrem como se estivessem num campo de certezas. Nem percebem que opróprio uso dessas duas palavras principalmente nos seus discursos acalorados sobre a importância de escolhermos a vida conduz quase necessariamente adefender armadilhas de morte e provocar formas sutis de violência. O que é vida?O que é morte? É possível que a morte se sustente fora da vida e a vida fora damorte? Não somos nós vida e morte ao mesmo tempo? Não somos sempre aprendizes,caminhando trôpegos, dando um passo depois do outro nas escolhas diárias que tentamos fazer?

Faz algum tempo que a Igreja Católica no Brasil vem desenvolvendo uma linha equivoca de defesa da vida. Quando falam da defesa davida reduzem o termo vida a vida do feto humano e, assegurados da vida do feto esquecem-se de todos os outros aspectos e personagens reais da complexa teia da vida. Fico me perguntando de novo porque insistemnesse erro e nesse limite lógico condenado também de muitas maneiras pelos muitos filósofos e teólogos da Tradição Cristã. Distanciam-se até das últimasreflexões de Bento XVI que com justeza discorre sobre a complexidade da vida no universo incluindo-se a vida humana.

Espanta-me constatar mais uma vez a pouca formação filosófica e teológica de parte do episcopado e de muitos clérigos que se arvoram a defender a vida, mas atiram pedras em pessoas que consideram"mal-amadas” só por defenderem um ideário diferente do seu. Por que "mal-amada”ou "mal-amado” seria uma forma de menosprezar ou diminuir as pessoas? O que defato querem dizer com isso?

Não somos todos nós necessitados de amor? Não é o amora missão cristã? Não é para os desprezados, esquecidos e mal-amados que oCristianismo diz manter sua missão a exemplo de Jesus? É desconcertante perceber que usam expressões desse tipo e instrumentalizam a mensagem cristã para afirmar desacordos de posições, como o fez D. Benedito Simão, bispo deAssis e Presidente da Comissão pela vida do Regional sul I da CNBB. Em entrevista ao Grupo Estado de São Paulo na semana passada, por ocasião da escolha da Professora e Doutora Eleonora Menicucci como ministra da Secretariade Políticas para Mulheres o referido bispo classificou a nova ministra de "mal-amada”e, com isso desrespeitou-a e incitou ao desrespeito e à falta de diálogo emrelação à responsabilidade pública de enfrentar os sérios problemas sociais.

Seria o bispo então um privilegiado "bem-amado”? Apartir de que critérios?

O desrespeito às histórias e escolhas pessoais, àsmuitas dores e razões de muitas mulheres torna-se moeda corrente em muitasIgrejas cristãs que se armam para uma chamada "guerra santa” sem a preocupação de aproximar-se das pessoas envolvidas em situações de desespero. Usam sua autoridade junto ao povo para gritar palavras de ordem e em nome de seu deus confundir as mentes e os corações.

Perdeu-se a civilidade. Perdeu-se o desejo de consagração à sabedoria e ao bom senso. Perdeu-se a escuta aos acontecimentos eà aproximação respeitosa das dores alheias. Apenas se responde a partir de PRINCÍPIOS e de pretensa autoridade. Mas, o que são os princípios fora da vida cotidiana das pessoas de carne e osso? Qual é o teto dos princípios? Quem os estabelece? Onde vivem eles? Como se conjugam nas diferentes situações da vida? O convite ao pensamento se faz absolutamente necessário quando as trevas da ignorância obscurecem as mentes e os corações. Nesse momento crítico de descrença em relação a muitos valores humanos, as atitudes policialescas de um ou mais bispos, de clérigos e pastores assim como de alguns fiéis nos apavoram. A ignorância das próprias fontes do Evangelho e a instrumentalização da fé dos mais simples nos espantam. A democracia real está em risco. A liberdade está ameaçada pelo obscurantismoreligioso.

De nada servem palavras como diálogo, escuta, conversão,solidariedade, respeito à vida quando na prática é a violência e a defesa deidéias pré-concebidas que parecem nortear alguns comportamentos religiosospúblicos. Seguem esquecendo que não se deve tomar Deus em vão. Não apenas seunome, pois isto, já o fazem. Tomar Deus em vão é tomar as criaturas em vão, selecionando-os,desrespeitando-as e julgando-as de antemão. Nós todas/os temos palhas e travesem nossos olhos e eu sou a primeira. Por isso, cada pessoa ou grupo apenas conseguever algo da realidade, que é sempre maior do que nós. Entretanto, se quisermos enxergarum pouco mais, somos convidadas a nos aproximar de forma desarmada dos outros.Somos desafiadas a ouvir, olhar, sentir, acolher, perguntar, conversar como seo corpo do outro ou da outra pudessem ser meu próprio corpo, como se os olhos eouvidos dos outros pudessem completar minha visão e audição. E mais, como se asdores alheias pudessem ser de fato minhas próprias dores e suas histórias devida minhas mestras. Só assim poderemos ter um pouco de autoridade comdignidade. Só assim nossa belas palavras não serão ocas. E, talvez, nessaabertura a cada dia renovada, poderemos acreditar na necessidade vital decarregar os fardos uns dos outros e esperar que a fraternidade e a sororidadesejam possíveis em nossas relações.

Fevereiro – 2012.

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